
Introdução
Em 1976, em
Paris, Steven Spurrier, um inglês proprietário de uma loja e de um curso de
vinhos na Cidade-Luz (Caves de la
Madeleine e Académie du Vin) e
hoje um conhecido crítico de vinhos (revista Decanter), promoveu, para celebrar o bicentenário da independência
norte-americana, uma degustação de vinhos franceses e californianos. A
degustação, às cegas, dividida em dois painéis (um de Chardonnays e outro de vinhos com predominância de Cabernet Sauvignon no corte), acabou por
surpreender o mundo quando sagraram-se campeões, em ambos os painéis, vinhos
californianos. A partir daí esses vinhos ganharam fama e prestígio.
Hoje a
Califórnia, contando com grande variedade de microclimas, produz 90% do vinho
norte-americano, desde jug wines
(vinhos simples, não raro de baixíssima qualidade, e muitas vezes vendidos a
granel) até vinhos de ponta, com grande capacidade de guarda, e que rivalizam
com os grandes Bordeaux (inclusive em
preço).
A
Califórnia possui cerca de 81 AVAs (American
Viticultural Areas), algumas maiores e outras menores, inseridas dentro de
uma ou mais AVAs maiores (e.g. Los
Carneros). As AVAs se diferenciam das AOCs francesas e das DOCGs e DOCs
italianas, pois indicam tão-somente parâmetros geográficos, deixando os
produtores livres para usarem as uvas e as técnicas que bem entenderem e sem
outras regras específicas.
Mesmo
assim, nota-se uma tendência de diminuição das áreas das AVAs, inclusive com
subdenominações nos moldes das AOCs francesas, privilegiando as diferenças de
solos e os diversos microclimas locais.
A
preocupação de muitos produtores com o seu terroir é tão grande, que alguns
destacam nos rótulos os nomes dos vinhedos e outros chegam mesmo a batizar
alguns rótulos com o nome do vinhedo (e.g. os vinhos Fay e S.L.V. da lendária Stag's Leap Wine Cellars). A busca pela
identidade e pelo destaque no meio do vastíssimo leque de rótulos de alta
qualidade disponíveis na Califórnia leva algumas vinícolas a produzirem vinhos
únicos, de edições e quantidades limitadas. Alguns vinhos privilegiam uma
pequena parcela de um vinhedo específico da vinícola (e.g. Stag's Leap Wine Cellars 2007 FAY Hillside Estate Cabernet Sauvignon
e Stag's Leap Wine Cellars 2007 FAY Block
1 Estate Cabernet Sauvignon, ambos de parcelas específicas de um mesmo
vinhedo), e, em geral, são vendidos apenas aos membros dos clubes de vinhos da
vinícola ou em leilões (muitas vezes arrematados por varejistas que os revendem
ao público).
Quando um
vinho é rotulado como sendo de uma AVA, 85% das uvas que o compõem devem ser
daquela AVA. Já quando há menção da cepa no rótulo, 75% do vinho deve ser
composto com aquela uva, podendo cada Estado editar normas ainda mais
restritivas. E, por fim, quando a safra consta do rótulo, 95% do vinho deve ser
daquela safra.
A variedade
dos vinhos californianos é enorme, com milhares de rótulos, o que acaba
tornando a compra de desses vinhos um verdadeiro trabalho de investigação!
Em maio
passado (nota: ano de 2011), minha esposa, meu filho de três anos e eu passamos
um mês na Califórnia e, entre visitas a amigos e uma passadinha na Disneyland, tudo sempre com a onipresente
presença do vinho (sim, há vinho na Disneyland),
visitamos três regiões vinícolas californianas (Napa Valley, Sonoma e Paso
Robles), conhecendo um total de 30 vinícolas.
Para
planejar a viagem, contamos com diversas publicações e extensa pesquisa na internet.
Nossa grande preocupação era como tirar o máximo de proveito do nosso tempo,
porém sem correrias e atropelos, e ainda conciliando os interesses de um menino
de três anos.
Em regra,
as vinícolas californianas cobram pelas degustações, existindo diversos tipos
delas, conforme a vinícola, bem como tours, harmonizações com comida, refeições
completas etc... No entanto, nem todas as vinícolas estão de portas abertas ao
público. Algumas demandam reserva prévia. E mesmo as abertas ao público em
geral exigem reserva para determinados tours. Assim, planejar é essencial, em
caso de interesses específicos.
Diversas
vinícolas contam com áreas para piqueniques, algumas possuindo delicatessen próprias. Compra-se ali o
seu vinho, uma garrafa, uma taça ou um flight,
senta-se e curte-se o visual dos vinhedos. A cultura do piquenique é muito
forte na Califórnia (não se considera "farofagem"), e assim tenha
sempre no carro queijos, pães e outras guloseimas, além de brinquedos para os
pequenos. Para quem viaja com criança, é perfeito!
Optamos por
fazer sempre um bom café da manhã, uma refeição ligeira no almoço - não raro um
piquenique em uma vinícola - e um jantar cedo no final da tarde. Aliás, uma
grande vantagem nos Estados Unidos, para quem está com criança, reside no
hábito de jantar cedo dos americanos.
Dividimos a
parte enófila de nossa viagem da seguinte forma: 3 dias para Napa Valley, 3 dias para Sonoma (mais especificamente a parte
norte - Russian River Valley, Dry Creek
Valley e Alexander Valley) e 2
dias para Paso Robles. Muito ficou de
fora, porém conseguimos nosso objetivo, conhecer parte representativa das
regiões escolhidas, de forma tranquila, sem correrias (odiamos "maratonas
turísticas").
Napa Valley
A mais
famosa região de vinhos dos Estados Unidos fica a aproximadamente 40 minutos de
San Francisco, de onde se pode fazer excursões de um dia, tipo bate-e-volta,
com muitas das operadoras turísticas locais que oferecem tours desse tipo.
Por ser a
mais famosa, Napa é também a região
vinícola com mais turistas e a mais cara. Assim, deve-se reservar hotéis, tours
nas vinícolas e restaurantes com a maior antecedência possível e evitar os
finais de semana.
Napa produz
apenas 4% do vinho californiano, contando com 15 AVAs inseridas na AVA Napa Valley (Stags Leap District, Rhuterford, Oakville, Oak Knoll, Yountville, Saint
Helena, Spring Mountain, Mount Veeder, Howell Mountain, Wild Horse Valley,
North Coast - as duas últimas se estendendo pelo territórios de outros
condados vizinhos - Chiles Valley, Atlas
Peak, Diamond Mountain), inclusive Los
Carneros, que se estende por Napa
e Sonoma, com climas mais frios e
propícios à Pinot Noir e à Chardonnay. Existem centenas de
vinícolas que não raro também produzem vinhos em outras partes do Estado. Não
obstante vinhos das mais variadas cepas, é a Cabernet Sauvignon que reina soberana aqui.
O vale de Napa é basicamente uma grande reta de
aproximadamente 56 km, rodeada de montanhas, com a cidade de Napa em uma ponta e Calistoga na ponta norte, tendo por artérias principais a Highway 29 e a Silverado Trail (esta com menos tráfego, visual mais bonito, e que
corre praticamente paralela à Highway 29).
O deslocamento é o mais fácil das regiões visitadas, com distâncias menores.
A cidade de
Napa não detém o charme das demais
cidades do vale, como Calistoga,
Yountville ou St. Helena, embora
recentemente esteja em curso um movimento para a sua revitalização.
Optamos,
para facilitar o deslocamento, por ficar em St.
Helena, praticamente no meio do vale, com diversas vinícolas e opções de
restaurantes nas proximidades.
1º dia
No primeiro
dia, nosso plano era nos concentrarmos na área de St. Helena e nos distritos vizinhos ao sul, Rutherford e Oakville.
E assim,
antes mesmo de fazermos o check in no
hotel, visitamos a Joseph Phelps
Vineyards, uma vinícola tradicional e que produz grandes vinhos, como seus
famosos e colecionáveis Insignia e Backus. Esta é uma das vinícolas que,
para visitar, só com reserva, o que já havíamos feito do Brasil.

Havia
reservado um dos seminários, o Single
Vineyards Cabernets, que dura uma hora e meia, com um grupo de no máximo
oito pessoas e no qual são apresentados os diversos terroirs de Napa Valley,
com seus estilos e características distintos, focando-se na Cabernet Sauvignon.
O seminário
inicia com duas provas comparativas de dois brancos (um Chardonnay de Sonoma Coast
e um Sauvignon Blanc de Napa) e dois tintos (um Pinot Noir de Sonoma Coast e um Merlot
de Napa).
Depois uma
bateria com Cabernets Sauvignons de terroirs distintos, todos de diferentes
sub-AVAs de Napa (St. Helena, Rutherford, Stags Leap District,
Oak Knoll e South Napa; esta última,
na verdade, é candidata a ser uma nova AVA). Por fim, os dois flagship wines da vinícola, o Backus e o Insignia.
Após o
seminário, fomos convidados a escolher dois vinhos e bebê-los livremente no
terraço olhando os vinhedos, o que fiz acompanhado de minha esposa e filho. E
lógico que escolhi o Backus e o Insignia.
O
tratamento da Joseph Phelps Vineyards
é de um profissionalismo incrível. Havia avisado com antecedência que, durante
o seminário, minha esposa e meu filho me esperariam. Simplesmente havia um
local muito agradável reservado para eles com sucos e água à vontade.
Uma
experiência inesquecível não só pela qualidade dos vinhos, mas sobretudo pelo
nível de profundidade do seminário e o primoroso atendimento que recebemos.

2º dia
No segundo
dia, rumamos para o norte do vale, rumo à Calistoga.
No caminho,
nossa primeira parada foi na Sterling
Vineyards. A proposta é bem diferente. Um tour por conta própria pela
vinícola, seguindo um caminho pré-determinado, acompanhado de degustações ao
longo e no final do caminho. O charme - e o que as crianças adoram - é que para
chegar na sede da vinícola no alto da montanha embarca-se em um teleférico
para, no máximo, quatro pessoas.
Ao desembarcar,
você recebe uma taça de Riesling e
começa o tour, seguindo as indicações, e vendo todas as fases da produção dos
diversos tipos de vinhos.
No meio do
tour, chega-se a um belíssimo terraço com vistas espetaculares do vale, onde se
recebe mais um vinho branco, dessa vez um frutado Sauvignon Blanc.
O tour se
encerra em uma sala de degustação com mais belas vistas de Napa Valley, e com mais dois vinhos tintos e um de sobremesa.
Provamos, então, um Chardonnay de Carneros, um Sangiovese, um Cabernet
reserva de Rutherford e um Cabernet reserva de Diamond Mountain, finalizando com um de sobremesa feito com Malvasia Bianca.
Uma dica
legal é imprimir o cupom no site da vinícola e ganhar US$ 5.00 de desconto em
cada ingresso (crianças não pagam).
Um passeio
imperdível, com vinhos excelentes.
Em seguida,
visitamos Calistoga e fomos até o
famoso Chateau Montelena. O Chateau Montelena Chardonnay 1973 foi,
na prova de brancos, o primeiro colocado no Julgamento de Paris em 1976. Há uma
garrafa exposta na sala de degustações ao lado do DVD do filme Bottle Shock.

Rumamos,
então, para a vinícola Castello di
Amorosa, perto de Calistoga.
Trata-se de uma construção inspirada nos castelos da Toscana e da Úmbria com
mais de cem quartos, capela e tudo. Produz uma enorme quantidade de vinhos, das
mais diversas cepas, inclusive italianas como Barbera e Sangiovese. A
visita vale mais pela arquitetura do que pelos vinhos propriamente.
Finalizamos
o dia jantando no restaurante Tra Vigne,
um dos clássicos de Napa, e com uma
extensa carta de vinhos, inclusive com muitas opções em taça e em meia garrafa,
opção plenamente justificável quando seus clientes passaram o dia degustando.
Provamos, no Tra Vigne, um dos
melhores vinhos da viagem, o Paradigm Cabernet
Sauvignon 2006 acompanhado de um dos melhores cordeiros que comi na vida.
Infelizmente, não conseguimos visitar essa vinícola, pois precisávamos reservar
com antecedência e não havia mais disponibilidade para o dia seguinte, nosso
último dia em Napa. Mesmo assim, trouxe duas garrafas compradas em Los Angeles.
3º dia
No último
dia em Napa, começamos pela famosa e
histórica Robert Mondavi Winery, em Oakville. Optamos por fazer um tour no
qual, após explicação sobre a região de Napa
e a história da família Mondavi, visitamos os vinhedos e as modernas
instalações da vinícola. E no final, uma degustação de alguns vinhos com snacks diversos para harmonizar com cada
um deles.
Degustamos
os seguintes vinhos: Robert Mondavi 2009
Unoaked Chardonnay, Robert Mondavi 2007 Napa Valley Merlot, Robert Mondavi 2008
Stag's Leap District Cabernet Sauvignon, e um vinho de sobremesa de Moscatel que não é comercializado, todos
excelentes.
Rumamos, em
seguida, para a V. Sattui Winery, do
mesmo proprietário do Castello di Amorosa,
na qual, apesar da imensa quantidade de rótulos produzidos, os vinhos são
superiores.
A vinícola
é perfeita para um piquenique, pois possui uma enorme delicatessen, com diversas opções de queijos (são centenas de
tipos), embutidos, sanduíches, saladas e massas. E come-se em mesas ao ar livre
em um cenário de vila toscana.
Após
degustar alguns dos vinhos da V. Sattui
(V. Sattui Napa Valley Chardonnay 2009, V. Sattui Dry Creek Valley Zinfandel
2009, V. Sattui Napa Valley Merlot 2007, V. Sattui Napa Valley Cabernet
Sauvignon 2007 e Sattui Family
Cabernet Sauvignon St. Helena 2007), fizemos um piquenique no local.
De lá
tivemos que optar entre visitar Los
Carneros, ao sudoeste da cidade de Napa
e o famoso Stags Leap District.
Optamos por esse último.
A primeira
vinícola visitada foi a Clos du Val,
localizada ao longo da Silverado Trail.
A vinícola conta com um belo jardim de rosas, e uma pequena área de piquenique
cercada de oliveiras.
Dentre as
degustações oferecidas, optamos pela Reserve
Reds Tastings com alguns library
wines (como são chamados os vinhos mais antigos, diversos da safra corrente
posta à venda no mercado).


A Stag's Leap Wine Cellars - que não deve
ser confundida com a Stags' Leap Winery
(outra vinícola) ou com a própria denominação Stags Leap District (reparem que o apóstrofo é diferente em cada um
dos nomes) - produz, a partir de seus vinhedos em Stags Leap District, três vinhos Cabernet Sauvignon (respectivamente, Fay, S.L.V. e Cask 23) e
um Chardonnay (Karia), bem como outros vinhos a partir de vinhedos, próprios ou
não, localizados em outras partes de Napa.
Optamos
pela Estate Collection Tasting Flight.
Iniciamos com um delicioso 2008 Arcadia
Vineyard Chardonnay. Em seguida, passamos para os tintos: 2007 Fay Cabernet Sauvignon, 2007 S.L.V. Cabernet
Sauvignon e o flagship wine da
vinícola Cask 23 Cabernet Sauvignon.
Todos fantásticos, da mesma sub-AVA (Stags
Leap District), porém de vinhedos diversos, com características distintas.
Na verdade, Fay e S.L.V. são vinhedos contíguos que, na
melhor expressão do terroir local,
produzem vinhos com características diversas. O famoso e caro Cask 23 era originalmente um vinho
elaborado a partir de uma parcela do vinhedo S.L.V. e atualmente é elaborado apenas em anos excepcionais, com as
melhores parcelas dos vinhedos Fay e
S.L.V.
No final, a
atendente ainda nos ofereceu, como cortesia, o Stags Leap Wine Cellar 2006 Merlot, também muito bom, e o Stags Leap Wine Cellar 2007 Artemis Cabernet
Sauvignon, de incrível relação custo-benefício.
Encerramos
o dia no Mustard Grill, em Yountville, um clássico restaurante
local que serve comfort food da
melhor qualidade. O nada modesto lema deles "Sorry...
everything has been delicious since 1983" realmente procede e então
entendemos a dificuldade que tivemos em conseguir reservar uma mesa!
Cheers!
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